Por Douglas Belchior
A vitória do Bisco da Igreja Universal do Reino de Deus, Marcelo Crivella (PRB), na disputa para a prefeitura do Rio de Janeiro desencadeou uma porção de declarações e pseudo-análises nas redes sociais, eivadas de preconceito e ofensas à comunidade evangélica. Eu não sou evangélico e tenho todas as críticas à maneira como lideranças religiosas fazem uso político da fé das pessoas e professam o ódio em nome de Deus, aliás, como bem fazem outras muitas religiões. Mas não podemos deixar esse momento de tristeza e derrota momentânea nos cegar e repetir o erro e a conduta que tanto criticamos em nossos adversários.
Figuras abomináveis como Crivella, Pastor Everaldo, Malafaias, Valdomiros ou Macedos não representam o todo da comunidade evangélica. Tampouco a representação do que eu prefiro chamar de ‘fundamentalistas religiosos’ – e não evangélicos de maneira genérica, se limita a esses nomes mais conhecidos. Há anos vemos crescer, eleição após eleição, esta representação parlamentar nas câmaras municipais e estaduais em todo país, a ponto de termos uma bancada fundamentalista poderosíssima no Congresso Nacional. Mas não apenas: Cadeiras em conselhos de diretos, conselhos tutelares e espaços sindicais tem sido sistematicamente ocupados por este seguimento. Ainda assim, reafirmo: não representam o todo.

Embora minoritários, há grupos progressistas importantes que se organizam no seio da comunidade evangélica e que, inclusive, estiveram junto com Freixo (Psol) nestas eleições. Ganha força entre os evangélicos, a Teologia da Missão Integral, algo bem parecido com a Teologia da Libertação, uma vertente teológica evangélica desenvolvida na América Latina e que defende que a dignidade humana, o cuidado com o meio ambiente e a luta contra toda a forma de opressão e injustiça são aspectos indissociáveis da mensagem do Evangelho. No Brasil, essa teologia inspira articulações tais como o MEP- Movimento Evangélico Progressista, que encampa pautas próprias do campo da esquerda já há muitos anos. Há ainda uma iniciativa que ganhou notoriedade a se colocar contrária ao Golpe de Estado sofrido pela presidenta Dilma, a Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, que sob a liderança do pastor Ariovaldo Ramos, ao lado dos Batistas Marco Davi e Luiz de Jesus, da jornalista Nilza Valéria e do teólogo Ronilson Pacheco, promovem um trabalho politicamente comprometido com as causas populares, com os direitos humanos e com a diversidade religiosa, além de defender o estado laico.
Sim, é preciso enfrentar o fundamentalismo religioso, conservador, neoliberal, preconceituoso e perverso que floresce e não é de hoje. Sempre bom lembrar que, lamentavelmente, este seguimento fora também alimentado e fortalecido pelo pragmatismo petista desde o primeiro mandato de Lula na Presidência da República. Fundamentalismo religioso é uma coisa. Comunidade evangélica é outra. É nossa tarefa separar o joio do trigo, dar voz e fortalecer politicamente os evangélicos coerentes, compreender a importância e a força da comunidade evangélica, trocar ideias e vivências, construir em conjunto e até aprender com ela, bem como nos provoca refletir o polêmico texto abaixo, publicado pelo @senshosp em 2013. Afinal, a esquerda brasileira tem algo a aprender com os evangélicos?
Vale a pena ler.
O QUE A ESQUERDA TEM A APRENDER COM OS EVANGÉLICOS
“As massas de homens que nunca são abandonadas pelos sentimentos religiosos
então nada mais vêem senão o desvio das crenças estabelecidas.
O instinto de outra vida as conduz sem dificuldades
ao pé dos altares e entrega seus corações aos preceitos
e às consolações da fé.”
Alexis de Tocqueville, “A Democracia na América” (1830), p. 220.
No Brasil, um novo confronto, na forma como dado e cada vez mais evidente e violento, será o mais inútil de todos: o do esclarecimento político contra o obscurantismo religioso, principalmente o evangélico, pentecostal ou, mais precisamente, o neopentecostal. Lamento informar, mas na briga entre os dois barbudos – Marx e Cristo – fatalmente perderemos: o Nazareno triunfa. Por uma razão muito simples, as igrejas são o maior e mais eficiente espaço brasileiro de socialização e de simulação democrática. Nenhum partido político, nenhum governo, nenhum sindicato, nenhuma ONG e nenhuma associação de classe ou defesa das minorias tem competência e habilidade para reproduzir o modelo vitorioso de participação popular que se instalou em cada uma das dezenas de milhares de pequenas igrejas evangélicas, pentencostais e neopentecostais no Brasil. Eles ganharão qualquer disputa: são competentes, diferentemente de nós.
Muitos se assustam com o poder que os evangélicos alcançaram: a posse do senador Marcello Crivela, também bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, no Ministério da Pesca e a autoridade da chamada “bancada evangélica” no Câmara dos Deputados são dois dos mais recentes exemplos. Quem se impressiona não reconhece o que isso representa para um a cada cinco brasileiros, o número dos que professam a fé evangélica ou pentecostal no Brasil. Segundo a análise feita pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), a partir dos microdados da Pesquisa de Orçamento Familiar 2009 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a soma de evangélicos pentecostais e outras denominações evangélicas alcança 20,23% da população brasileira. Outros indicadores sustentam que em 1890 eles representavam 1% da população nacional; em 1960, 4,02%.
O crescimento dos evangélicos não é um milagre, é resultado de um trabalho incansável de aproximação do povo que tem sido negligenciado por décadas pelas classes mais progressistas brasileiras. Enquanto a esquerda, ainda na oposição política, entre a abertura democrática pós-ditadura e a vitória do primeiro governo popular no Brasil, apenas esbravejava, pastores e missionários evangélicos percorreram cada canto do país, instalaram-se nas regiões periféricas dos grandes centros urbanos, abriram suas portas para os rejeitados e ofereceram, em muitos momentos, não apenas o conforto espiritual, mas soluções materiais para as agruras do presente, por meio de uma rede comunitária de colaboração e apoio. O que teve fome e dificuldade, o desempregado, o doente, o sem-teto: todos eles, de alguma forma, encontraram conforto e solução por meio dos irmãos na fé. Enquanto isso, a esquerda tinha uma linda (e legítima) obsessão: “Fora ALCA!”.
O crescimento dos evangélicos não é um milagre, é resultado de um trabalho incansável de aproximação com o povo
Desde Lutero, a fé como um ato de resistência (Life of Martin Luther and and the Heros of Reformation, litografia, 1874)
O mapa da religiosidade no Brasil revela nossa incompetência social: os evangélicos e pentecostais são mais numerosos entre mulheres (22,11% delas; homens, 18,25%), pretos, pardos e indígenas (24,86%, 20,85% e 23,84%, respectivamente), entre os menos instruídos (sem instrução ou até três anos de escolaridade: 19,80%; entre quatro e sete anos de instrução: 20,89% e de oito a onze anos: 21,71%) e na região norte do país, onde 26,13% da população declara-se evangélica ou pentecostal. O Acre, esse Estado que muitos acham que não existe, blague infantilmente repetida até mesmo por esclarecidos militantes de esquerda, tem 36,64% de evangélicos e pentecostais. É o Estado mais evangélico do país. Simples: a igreja falou aos corações e mentes daqueles com os quais a esquerda nunca verdadeiramente se importou, a não ser em suas dialéticas discussões revolucionárias de gabinete, universidade e assembleia.
O projeto de poder evangélico não é fortuito. Ele não nasceu com o governo Dilma Rousseff. Ele não é resultado de um afrouxamento ideológico do PT e nem significa, supõe-se, adesão religiosa dos quadros partidários. Ele é fruto de uma condição evangélica do país e de uma sistemática ação pela conquista do poder por vias democráticas, capitalizada por uma rede de colaboração financeira de ofertas e dízimos. Só não parece legítimo a quem está do lado de fora da igreja, porque, para cada um dos evangélicos e pentecostais, estar no poder é um direito. Eles não chegaram ao Congresso Nacional e, mais recentemente, ao Poder Executivo nacional por meio de um golpe. Se, por um lado, é lamentável que o uso da máquina governamental pode produzir intolerância e mistificação, por outro, acostumemo-nos, a presença deles ali faz parte da democracia. As mesmas regras políticas que permitiram um operário, retirante nordestino e sindicalista chegar ao poder são as que garantem nas vitória e posse de figuras conhecidas das igrejas evangélicas a câmaras de vereadores, prefeituras, governos de Estado, assembleias legislativas e Congresso Nacional. O lema “un homme, une voix” (“um homem, uma voz”) do revolucionário socialista L.A. Blanqui (1805-1881), “O Encarcerado”, tem disso.
Afora a legitimidade política – o método democrático e a representação popular não nos deixam mentir – a esquerda não conhece os evangélicos. A esquerda não frequentou as igrejas, a não ser nos indefectíveis cultos preparados como palanques para nossos candidatos demonstrarem respeito e apreço pelas denominações evangélicas em época de campanha, em troca de apoio dos crentes e de algumas imagens para a TV. A esquerda nunca dialogou com os evangélicos, nunca lhes apresentou seus planos, nunca lhes explicou sequer o valor que o Estado Laico tem, inclusive como garantia que poderão continuar assim, evangélicos ou como queiram, até o fim dos tempos. E agora muitos militantes, indignados com a presença deles no poder, os rechaçam com violência, como se isso resolvesse o problema fundamental que representam.
A esquerda nunca dialogou com os evangélicos,
nunca lhes apresentou seus planos,
nunca lhes explicou sequer o valor do Estado Laico
Se esqueçam dos megacultos paulistanos televisionados a partir da Av. João Dias, na Universal, ou da São João, do missionário R.R. Soares. Aquilo é Broadway. Estamos falando destas e outras denominações espalhadas em todo o território nacional, pequenas igrejas improvisadas em antigos comércios – as portas de enrolar revelam a velha vocação de uma loja, um supermercado, uma farmácia – reuniões de gente pobre com sua melhor roupa, pastores disponíveis ao diálogo, festas de aniversário e celebrações onde cada um leva seu prato para dividir com os irmãos. A menina que tem talento para ensinar, ensina. O irmão que tem uma van, presta serviços para o grupo (e recebe por isso). A mulher que trabalha como faxineira durante a semana é a diva gospel no culto de domingo à noite: canta e leva seus iguais ao júbilo espiritual com os hinos. A bíblia, palavra de ninguém menos que Deus, é lida, discutida, debatida. Milhares e milhares de evangélicos em todo o país foram alfabetizados nos programas de Educação de Jovens e Adultos (EJAs) para simplesmente “ler a palavra”, como dizem. Raríssimo o analfabeto que tenha sido fisgado pela vontade ler “O Capital”, infelizmente. As esquerdas menosprezaram a experiência gregária das igrejas e permaneceram, nos últimos 30 anos, encasteladas em seus debates áridos sobre uma revolução teórica que nunca alcançou o coração do homem comum. Os pastores grassaram.