
Sobres vivencias do racismo cotidiano, no relato de Kwame Yonatan, autor do livro “Nasce um desejo”
Por Kwame Yonatan, in memorian de Jonathas Salathiel
Eu na praia. Uma desconhecida se aproxima.
-Com licença moço, desculpa te incomodar.
-Oi?
– Minha filhinha pequena estava de longe admirando seu cabelo. Ela nunca tinha visto alguém assim, está admirada e ela queria ver você de perto.
Nesse momento, aproxima-se uma garotinha negra de cinco anos linda e tímida, em cima de uma boia.
Eu sorrio para ela e digo que o cabelo dela é lindo também. Ela fica mais tímida e se esconde atrás da mãe. A moça agradece e as duas vão embora.
Quando tinha a idade dela sempre tive cabelo raspado, lembro de uma vez na oitava série de fazer um corte de cabelo diferente (igual ao do Will Smith) e ser motivo de risos na escola. História recorrente para quem é negra/o.
O cabelo é a parte mais sensível da população negra e é pela raiz que se começa o racismo: vai raspar ou alisar?
Anos depois, uma microrrevolução crespa começou em mim, deixei crescer, descobri depois mais de uma década que tinha cabelo cacheado, trancei, subi o “black power” e desde então nunca mais deixei cair. Comecei a assumir o meu cabelo, com orgulho e do jeito que ele se apresentava. Era o início do AFROntamento.
Sem que fosse possível prever, senti um efeito multiplicador nessa microrrevolução. Pessoas ao meu redor, algumas conhecidas outras não, abordavam-me para me perguntar como eu fazia para deixar meu cabelo daquele jeito e eu respondia:
-É só se permitir, deixa encrespar geral.
Não havia alegria maior do que anos depois encontrar aquela pessoa em transição capilar, assumindo seu cabelo como ele era.
Devido a esse efeito estético multiplicador do encrespamento, eu resolvi abordar uma outra forma de enfrentamento ao racismo, nem tão bela, mas tão potente quanto. Resolvi escrever um relato “extra-pessoal” sobre o dia em que gritei e denunciei o racismo que passei no trabalho em 2015.
Foi no dia 13 de agosto de 2015, infelizmente, no mesmo dia que uma pessoa maravilhosa se “encantou”, Jonathas Salathiel, amigo que me convidou para o antigo subnúcleo de relações raciais do CRP-SP. E, nessas ironias tristes que só o destino sabe realizar, foi no mesmo dia 13 que sofri racismo no trabalho e resolvi denunciar. Jonathas era alguém muito especial, de uma militância tranquila e cuidadosa e dedico a ele esse texto,também.
Eu era bolsita de um projeto de pesquisa ligado a Usp. Meu contrato já estava no fim e ia ser renovado. Entretanto, quase perto do fim do contrato, em uma reunião de trabalho, a minha supervisora perguntou ao secretário executivo sobre o que fazer com as horas restantes do meu contrato que já estava finalizando. Ele respondeu:
– Chicote! Vai limpar, passar, servir cafezinho!
…
Nesse momento, eu interrompo o relato, abro parênteses e reflito: até onde podemos ir?
Por que denunciar as práticas de racismo quando 70 por cento das denúncias são vencidas pelo réu? (http://observatorio3setor.com.br/noticias/racismo-no-brasil-quase-70-dos-processos-foram-vencidos-pelos-reus/)
Até onde vai a palavra que quando retorna volta oca, emudecida?
Como escrever com uma letra morta de algo invisível tão vivo que pulsa na flor-da-pele? Como superar mais essa barreira?
Eis um texto a procura da palavra que rompa os silêncios voltando a ter sentido (direção, significado e toque). Visibilizar a lei 14.187/10 do Estado de São Paulo de combate ao racismo, falarei mais dela adiante.
Eu já havia incentivado tanta gente a lutar contra o racismo, mas nunca imaginei que um dia teria que ir à delegacia denunciar. Pois é, existem tantas histórias mal contadas, malditas…
…
A reunião contava com oito pessoas (todas brancas) na sala, ninguém disse nada e, nesse momento, pude mais que sentir o que é a branquitude. Restava um ar ácido, um mal-estar difícil de engolir, como se um véu tivesse sido rasgado. Acabou-se a reunião saímos para almoçar, porém o estômago ainda voltava para a boca.
Até que em uma conversa casual sobre o ocorrido, ouvi:
-Kwame, você tem que denunciar!
Vomitei a cena por semanas para várias pessoas e qual não foi a minha surpresa ao descobrir que várias amigas, amigos e familiares negrxs haviam passado por situações semelhantes de racismo no trabalho.
Conversei com uma amiga advogada, ela passou as possibilidades que tinha frente ao ocorrido. Inicialmente, escolhi o processo educativo, pois acreditava (e ainda creio) que a educação é a arma mais eficiente contra os racismos. No mais, já havia acertado a renovação do contrato, logo, deveríamos falar sobre relações de trabalho.
Contei para a coordenadora do projeto o que aconteceu na reunião, o episódio de racismo e a importância de realizamos uma conversa sobre relações raciais, a 1ª pergunta dela foi:
-Mas você entendeu assim mesmo, que foi racismo?
Nesse momento percebi que haveriam resistências ao processo de discussão das relações raciais no ambiente de trabalho.
Então, dia 23 de outubro de 2015 foi decidido que não se renovaria mais meu contrato.
…
Resistência é uma palavra interessante, pois, ao mesmo tempo, significa “opor-se” a algo, ou seja, oferecer resistência, defender-se e, também, suportar.
Resisti a entrar em um processo jurídico, por vários motivos, mas não podia suportar a ideia de no mesmo episódio sofrer dois tipos de racismo diferentes: interpessoal e institucional.
Abri o processo criminal por crime de racismo, porém a delegada tipificou como injúria racial, e também abri outro processo administrativo, pois no estado de São Paulo existe uma lei que pune atos de discriminação racial no âmbito administrativo (lei estadual nº14. 187/2010).
E a sentença? O resultado?
É o que menos importa.
Escrevo para combater as narrativas que dizem que denunciar o racismo não tem resultado.
Dois anos depois, ainda não terminou o processo, contudo é preciso quebrar o silêncio sobre o racismo, de modo que a luta seja cotidiana. Do corte na pele fazer um rasgo na paisagem do mito da democracia racial.
Ao romper o silêncio sobre o racismo, foi possível perceber que não se trata de um processo individual. Foram incontáveis histórias de pessoas que chegaram até mim para contar suas feridas provocadas pelas práticas do racismo. Histórias que foram invisibilizadas pela vergonha, medo ou por acharem que era um exagero chamarem o crime de a violência do racismo.
Ao mesmo tempo, várias pessoas se associaram no percurso, quase como a criação de um quilombo enquanto espaço virtual de re-existência; e também pude entender outros amigos que ficaram pelo caminho.
Quando se trata de afrontamento interseccional (enfrentamento ao racismo, machismo, transfobia, homofobia, bifobia e lesbofobia) não se trata de uma vitória pessoal apenas, porém lembrar o pássaro africano “Sankofa”: olhar sobre o passado para ressignificar o presente e possibilitar a emergência de outros futuros. Entender que a pedra lançada hoje pode atingir o alvo amanhã.
Deste modo, do que vale apenas minha vitória nesses processos jurídicos e saber que quando meu sobrinho e minha sobrinha pequenos crescerem e entrarem na escola ainda pode ser que riam do cabelo crespo deles?
O nosso real triunfo nesse processo de afrontamento será quando entendermos a discussão das relações raciais no Brasil, a partir do seguinte princípio: o racismo é um dado estruturante das relações.
O afrontamento é um apelo ao diálogo, quando possível, ou ao Front de guerra, quando necessário. Temos que afirmar o nosso direito de sermos como quisermos ser, se existir é uma conquista, afirmamos nossa existência, há que re-existirmos!
Propaganda Social
Colabore com as mulheres empreendedoras da Uneafro-Brasil

Vista-se em luta!
A UNEafro-Brasil, reinaugura sua loja de camisetas e artigos de reverência à luta do povo negro brasileiro!
Além de se vestir com as imagens e cores de nossa resistência, você estará contribuindo para manter financeiramente um movimento de luta, autônomo e independente!
Todos os produtos são confeccionados pelas mulheres que fazem parte do Núcleo de Economia Solidária Das Pretas da UNEafro.
Colabore! Escolha o seu manto afro e junte-se a nós!